quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Entrevista

Jurema Werneck





“O Brasil é racista”



A coordenadora da ONG Criola, Jurema Werneck, é direta: “O Brasil é racista”. E também o governo, que organizou mal a Conferência de Igualdade Racial: além de discriminar outras minorias, não havia uma política a avaliar ou um plano de ação a aprimorar. “Apenas retórica de péssima qualidade”, reclamou. Médica, doutora em Comunicação pela UFRJ, Jurema conclama o profissional da saúde a participar da luta contra o racismo, que deveria ser parte da razão pela qual trabalham e vivem. “Torna as pessoas melhores”.



O que é igualdade racial para você?



É a igual possibilidade de acesso a direitos e bens públicos. É a possibilidade de estar no mundo sem viver em diferentes formas de violência.



Qual a importância da inclusão dos profissionais da saúde nesta discussão?



É um imperativo político e ético. Profissionais de saúde têm uma obrigação que não estão cumprindo adequadamente, por diferentes razões. Os indicadores de saúde das populações negra e indígena — TODOS! — demonstram isso. Portanto, a inclusão deles no debate e nas ações de superação do racismo e de seus impactos em nossas vidas é fundamental.



Você ouve queixas do tratamento dado aos negros na saúde?



Sempre recebo denúncias. O racismo é descarado e de crueldade incrível, considerando a grande vulnerabilidade da pessoa e da coletividade nas demandas de saúde. Não falo apenas do racismo interpessoal, que trata mal, que sonega informações, exames, tratamentos. Falo também na diferença de oferta da política de saúde e do SUS. Sempre encontramos os piores indicadores em áreas de grande participação negra e indígena. Finge-se desconhecer que parte da população cigana é nômade há milhares de anos — e não se disponibilizam políticas públicas para esse povo porque não tem endereço fixo. Esperam que achemos natural ter um vice-presidente que transformou em doença crônica um câncer agressivo, enquanto pessoas morrem de causas indeterminadas, em condições que favorecem a crescente presença do câncer entre nós.



O que fazer?



Profissionais de saúde sabem da desigualdade. Muitos a praticam. Grande parte é conivente, silencia. Participar da luta antirracismo deveria ser parte da razão pela qual trabalham e vivem. Torna as pessoas melhores, inclusive quem trabalha com saúde. Participar se justifica também como oportunidade de melhorar a qualidade do trabalho. E já existe uma ótima ferramenta para auxiliar nessa tarefa: a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, por exemplo, que diz que o sistema de saúde deve agir para enfrentar o racismo dentro e fora de suas fronteiras e atuar para a redução da morbimortalidade de negras e negros. Se estas razões não são suficientes (acredito que seja uma minoria), devem agir para a equidade, a universalidade e a integralidade porque foram contratados e pagos para isso.



Apesar da Lei Caó e das cotas, a luta dos negros desperta mais resistência?



Trata-se da voz do racismo falando. O que conquistamos até aqui, senão o direito de repudiar o racismo? Somos, neste ano de 2009, em torno de 100 milhões de pessoas no Brasil (não podemos ser chamados de minoria!) e temos os piores indicadores socioeconômicos e de saúde... Como definir isso como “demasiado favorecimento”? Muitos e muitas acham que é demasiado porque consideram adequadas as violências que vivemos. É racismo ou não é?



Como um país supera uma tragédia como a escravidão?



O racismo é uma tragédia que não se explica pela escravidão, e sim pelo desejo e o poder de uns — em nosso caso, de mulheres e homens brancos — de infligir violência e morte àqueles e àquelas que consideram inferiores. Poder que tem se mantido ao longo dos séculos. A escravidão foi um sistema de hiper-exploração econômica. Superá-la implica reparações e políticas distributivas. O racismo requer muitas outras medidas. Não se trata de pecado ou culpa que devam se expiadas — mas concordo que há uma questão ética a ser resolvida também. As leis, as ações afirmativas — as cotas aí incluídas — são parte da solução. Mas muito mais deverá ser revolvido e removido para que a justiça se instaure.



Como você avaliou a conferência?



Ela só esteve na pauta governamental por pressão do movimento social antirracismo. Assim, considero sua realização uma conquista. Por outro lado, o governo se saiu muito mal. Não havia uma política a avaliar, não havia um plano de ação a aprimorar. Havia apenas retórica de péssima qualidade (e não falo de um ministro em especial, mas da maioria dos agentes governamentais que lá estiveram), iniciativas vergonhosas de cooptação, ausência do presidente Lula. E a reiteração do compromisso de grande parte do movimento social em não aceitar retrocessos nem negociações espúrias no governo e no Congresso que ameacem as conquistas e as lutas da população negra no Brasil.



Na discussão sobre saúde, os debates priorizaram a saúde da população negra. Por que não das outras etnias?



O Brasil é racista e o governo, que organizou a conferência e suas mesas, também. Assim, grupos são excluídos, prejudicados. Acredito também que o governo considerou que nós, negras e negros ali presentes, compactuaríamos com esta discriminação. E que indígenas, mulheres e homens judeus, árabes/muçulmanos, ciganos silenciariam e aceitariam esta exclusão. Felizmente, estávamos todos e todas lutando pela mesma causa. O governo ainda nos deve uma explicação adequada. (A.D.L.) n ç

http://www4.ensp.fiocruz.br/radis/86/capa-02.html

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